segunda-feira, 5 de julho de 2010

Noivas do Cordeiro - uma fase de desenvolvimento

Noivas do Cordeiro; existe um desenvolvimento comunitário?
O homem trata de coisas não existentes ou imaginárias, precisamente com a mesma segurança com que trata de objetos tangíveis. Sim, acreditamos e sabemos que as sereias não existem, mas o artista pode pintá-las em lindos quadros, o cineasta pode produzir filmes com interessantes histórias sobre esses seres lendários. Podemos ensinar alguém o caminho para chegar a uma trilha de uma famosa cachoeira. São tantas e diferentes instruções que podemos transmitir através de palavras, e certamente o desenvolvimento humano está associado a várias dessas instruções.
Uma das mais extraordinárias possibilidades mentais do homem é a sua capacidade de abstração mental. Na verdade, a maior parte do potencial de aprendizado depende da capacidade de quem ouve, e o que a pessoa faz com o que foi ensinado. Claro que as informações preciosas transmitidas por uma pessoa hábil e inteligente dependem dos recursos mentais que o ouvinte possui, para perceber, imaginar, abstrair e consequentemente executar tarefas baseadas na seqüência de instruções transmitidas. Foi após o aparecimento da capacidade mental para lidar com abstrações intelectuais que surgiram as altas matemáticas, filosofia, poesia, religião, ética, e muitos outros caminhos do conhecimento. O desenvolvimento humano depende dessa capacidade humana - o raciocínio.
Quando o cientista social em trabalho de campo realiza estudos numa determinada comunidade, muitas de suas propostas e tecnologia social empregada dependerão das condições que dispõem os moradores. O serviço à comunidade não é a mesma coisa que Desenvolvimento da Comunidade. Muitas instituições oferecem serviços que possibilitam melhores condições sociais, seja na forma de atividade religiosa, instrução técnica, mobilização social, palestras, cursos, etc., mas ainda essas admiráveis ajudas ao povo e às organizações não é o Desenvolvimento Comunitário.
Muitas pessoas pensam que o Desenvolvimento Comunitário é uma atividade destinada a favorecer povos subdesenvolvidos. Trata-se de proporcionar boas condições, como apresentar uma receita para a tomada de decisões inteligentes. Algumas definições para o sentido que se dá para Desenvolvimento Comunitário focalizam o aspecto externo. Algo como se o desenvolvimento tivesse que ser a construção de novas escolas, hospitais, piscinas, algum prédio novo ou aquisição de equipamento. Porém, trata-se de algo ainda maior que isso. É mais do que os triunfos conseguidos, o aperto de mão do governador, o trator da prefeitura sempre à disposição, e outros paparicos em troca de favores tenebrosos.
Todos os ativistas profissionais em ação social procuram a ênfase do melhoramento de condições, da vida econômica e mesmo mudanças substanciais de opinião pública, que modificam grandemente de base ao ambiente comunitário, e por mais arrogante que sejam, é um fato que essa última possibilidade melhora profundamente as condições de vida de qualquer comunidade, no mundo, que almeje o respeito e boas condições sociais.
O Desenvolvimento Comunitário é compreendido de diferentes maneiras. Refere-se a vários estágios ou muitas e variadas atividades. Do ponto de vista que utilizamos o termo, a essência do seu significado é mais ampla e ultrapassa os limites físicos.
Ainda no ano de 2006 quando em Belo Vale várias pessoas falavam das moradoras de Noiva do Cordeiro, com expressões desagradáveis, e outros irresponsavelmente estimulavam que visitássemos o local, com claras evidências de que estavam estimulando a prevaricação sexual. As referências eram absolutamente desagradáveis de ouvir e provocavam idéias ruins a respeito de todas as pessoas que porventura morassem na Vila de Noiva do Cordeiro. Quem não se comoveria com o falatório intenso e rico em detalhes sobre a conduta delas, como se fossem as pessoas mais depravadas? O termo menos grave que utilizavam para definir a conduta dos moradores desse povoado era o de que todas as mulheres eram “prostitutas”. Pelo modo como essas pessoas falavam sobre o local, ficou claro que era um costume deles desde há muito. Supomos que inúmeros outros visitantes tivessem ouvido sobre esses assuntos provocantes.
Da parte dos profissionais que ouviram esses comentários ocorreu uma reação diferente, simplesmente pelo fato de que estavam e estão a serviço de Mobilização Social, dentro do Vale do Paraopeba. Comentários caluniosos ou difamatórios não poderiam servir aos propósitos de defesa do patrimônio arqueológico, cultural e histórico. Certamente, qualquer indivíduo que lide com uma ampla variedade de interesses especiais, procura apoio de – Boas Causas -, que tradicionalmente são tidas como louváveis; defender o meio ambiente, defender a justiça, defender a moral e os bons costumes, promover o bem-estar social, etc.
Quando fizemos a primeira visita, os moradores de Noiva do Cordeiro, no dia 28 de agosto de 2006, demonstravam pouca preocupação com o que apresentamos como um suposto problema social. Várias das jovens disseram: “Nós não nos importamos com o que o pessoal de Belo Vale pensa de nós. Isso não afeta nossa vida em nada.” Aparentemente ninguém sentia incômodo pelos comentários que transmitimos a eles e expressamos nossas preocupações a respeito. Exatamente por considerar um ato de cidadania e justiça, além do fato de que estariam moralmente em risco, sendo prejudicadas socialmente. Depois de argumentar nesse sentido, outras pessoas refletiram sobre possíveis percas que estavam ocorrendo e imediatamente associaram a essa marginalização social. A conversa simpática durou bastante, e fomos convidados a dormir na vila. No dia 29 de agosto do mesmo ano, Rosalee Fernandes Pereira, a vereadora eleita basicamente por seus parentes do povoado de Noiva do Cordeiro, não foi à câmara e ficou conosco, como anfitriã e nos apresentou sua avó Geralcina, sua tia Matuzinhas, e também o seu tio Elias para contar “causos”. A vereadora fez inúmeras perguntas e procurou saber o que um antropólogo da comunicação poderia fazer no sentido de melhorar as condições e reputação dos seus parentes. Foram apresentadas diferentes explicações e possibilidades, com o intuito de esclarecer em que serviria e quais seriam as chances de sucesso. Primeiramente, foi levantada a hipótese de Mobilização Social e de modo consecutivo a descoberta do interesse comum dos habitantes do vilarejo.
Trinta dias depois da primeira visita Rosalee telefona-nos para nos convidar a um passeio até o Norte de Minas e discutir possibilidades de uma intervenção antropológica entre eles. Antes da viagem, durante uma semana, foram discutidas diferentes estratégias e condições de realizar melhorias substanciais entre eles, quanto ampliar as condições sociais da comunidade. Ficou estabelecido que algumas pessoas trabalhariam no oficio de artesanato, na forma de aprendiz, e que o ateliê seria um Projeto Piloto para ser estendido a toda a comunidade quando fosse conveniente. Ainda no ano de 2006 as iniciativas foram bem sucedidas, com a apresentação do primeiro trabalho de artesanato sendo levado para a exposição da Expominas (associado ao projeto Vale Cultura). Foram divididos em diferentes grupos de aprendizes, com responsabilidades para algumas pessoas que se destacavam com algumas habilidades. Não havia qualquer pessoa especializada em nenhuma profissão, e demonstraram grande boa vontade de aprender e progredir; foram improvisados departamentos com crachás para todos, no departamento de comunicação visual e monitoria antropológica, biblioteca, ateliê, etc.
Durante esse processo de observação-participante, ficou notável o que representava para as mocinhas da comunidade, que a palavra “prostituta” havia se tornava uma grande ofensa a elas. Se no primeiro instante, por um ato de desprezo negaram a importância e ofensa da palavra, com o tempo o assunto se tornou uma séria preocupação. O curso de filosofia aplicada, várias palestras e admoestações fizeram com que ocorressem mudanças significativas. Todas as moradoras discutiram, após uma palestra sobre o assunto, a respeito de suas roupas provocantes e decidiram de forma unânime abandonar as minissaias moderníssimas. No dia seguinte à palestra uma das jovens moradoras veio nos dizer sobre essa decisão. Foi algo emocionante e perturbador, quanto surpreendente.
O termo “prostituta” passou a ter uma diferente conotação entre eles, depois de exaustivas discussões a respeito do que representariam um rótulo depreciativo que certamente marginaliza a mulher na sociedade. Para a própria comunidade haveria graves conseqüências. Nem sempre as pessoas percebem a importância assumida pelas palavras e pela fala das pessoas. Para muitas pessoas mesmo uma conversa normal pode se tornar de importância vital. Declarações que classificaríamos como pura tagarelice ou conversa fiada podem ser levadas a sério e cuidadosamente analisadas. Para muitas pessoas se uma pessoa é importante igualmente é a palavra que a designa. Uma parcela considerável do que está no passado dessa comunidade está inserida na identidade coletiva dos moradores. É claro que a construção da memória coletiva tem fortes vínculos com o que os indivíduos fizeram de seus passados. Contudo, após as inúmeras reportagens maquiadas e coloridas pelas cores berrantes da edição jornalística, até mesmo os antigos opositores mudaram o tratamento em relação aos habitantes. Uma mudança oportuna e por vezes oportunista, pois a reinterpretação do passado dessa comunidade faz parte de uma atividade deliberada, fruto de uma “falsa consciência”, com sentidos absolutamente discrepantes em relação ao passado histórico.
Sob certo aspecto, os resultados são nítidos, mas inteiramente vulneráveis à realidade. Uma vez reunidas as correlações entre mais de uma dúzia de diferentes fatores que influenciam no comportamento, podemos notar quão verdadeiro e importante é a influência de uma palavra para o cérebro. Se repetidas vezes uma pessoa ouvir um termo de conotações fortes, isto pode influenciar que a pessoa ou grupos de pessoas passem a agir dessa ou outra maneira. O inconsciente coletivo é algo extraordinário e não deveríamos exagerar ou ignorar sua importância. Incrivelmente, fomos todos influenciados com essas significativas afirmações a respeito dos moradores de Noiva do Cordeiro. Seria difícil antecipadamente ter certeza de que não se tratava de uma comunidade onde as mulheres não fossem prostitutas. Logo à primeira vista, havia alguns sinais que indicavam uma comunidade distinta das demais conhecidas em todo o Vale do Paraopeba. Entretanto, ocorria a idéia clara de que realmente o local pudesse ser um prostíbulo, baseada nalgumas suposições e influências tanto do que havia sido dito, de maneira convincente, quanto várias posturas que nos fizeram enganar. Somente após meses seguidos tornou-se possível diminuir essa dúvida, e aumentaram nossas certezas.
Os cientistas sociais não são aventureiros procurando diversão ou reformadores do mundo. São peritos da sociedade e do homem. Claro que em muitos momentos os conceitos sociológicos servem e serviram pra melhorar a sorte de grupos de seres humanos, seja pela revelação de suas potencialidades ou destruindo suas ilusões coletivas. É claro que o cientista social sensível às questões morais pode sentir gratificação quando seus conhecimentos contribuem para melhorar a qualidade de vida das pessoas.
Este profissional se ocupa de compreender a sociedade de uma maneira disciplinada. Significa que aquilo que ele descobre e afirma sobre os acontecimentos e fenômenos devem estar dentro dos limites rigorosos do científico.

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